ANJO é o caralho! Desde quando iniciei a leitura do livro Todas as Noites que Nunca Aconteceram eu esbravejava sempre que Gabe chamava Sarah de anjo, o mocinho bonzinho demais, preocupado demais, atento demais, romântico demais, tudo demais além da conta do confiável. Quando a esmola é demais, todo santo desconfia. Além da minha tolerância a doçura exacerbada, eu acabava, involuntariamente, fazendo um paralelo com o caso do médico (Gabe também é médico) do interior do Ceará que estuprava as pacientes, virou até manchete no Fantástico, mas, como sou cearense, o caso já vinha sendo noticiado nos programas locais há muito tempo e sempre que Gabe chamava Sarah de anjo, eu lembrava do tal médico chamando as pacientes de bebê antes do estupro. Aquela máscara de doçura para esconder sua verdadeira face do mal.
Sarah é a melhor costureira da região, pelo menos é o que dizem, sócia de uma loja de costura, ela se dedicava ao máximo no aperfeiçoamento de sua profissão, fazia cursos, participava de eventos, tudo para de fato ser a melhor. No momento seu foco era estritamente profissional, saia com amigos por diversão, mas não buscava nada sério, até mesmo quando Gabriel entrou na sua vida, um homem de tirar o fôlego, isso temos que concordar, que adorava ir na loja flertar com Sarah.
Em um segundo Sarah estava deixando o lixo do lado de fora da loja, quando esbarrou com o Dr. Gabriel, oncologista, por acidente Sarah cortou a mão e prontamente Gabriel se prontificou em ajudar no curativo, flertes e mais risadinhas, mas naquele momento um relacionamento sério era uma realidade bem distante. No segundo seguinte, Sarah está acordando em uma casa desconhecida, em outro país e, surpreendentemente, casada com Gabe, o tal Gabriel.
Na noite anterior, Sarah tinha caído da escada e batido a cabeça, ocasionando um lapso de memória, ela não conseguia lembrar dos últimos anos de sua vida, mais precisamente dos últimos 4 anos, tempo em que se relacionou com Gabriel, se casou, se mudou para Argentina e se mudou para uma casa de vidro isolada do mundo. Tinha um atelie particular lindo, isso é verdade, um sonho para qualquer costureira, mas algo estava muito errado com todas as decisões que aquela Sarah tomou nesses últimos 4 anos.
Aos poucos, ela foi aceitando sua nova condição e buscando entender quem era aquela nova Sarah, quais seus anseios e desejos, o que ela sonhava, porque tinha tomado decisões tão radicais de se isolar do mundo e viver sem tecnologia. Gabe é um marido espetacular, doce e compreensivo, respeitava o espaço dela e estava sempre disposto a esclarecer qualquer dúvida que ela tivesse, ou contar inúmeras vezes todas as histórias que eles já viveram durante aquele tempo.
Apesar da vida maravilhosa que ela disponha e o tal marido fantástico, algo ainda não fazia sentido, aquela definitivamente não era ela e Gabe, as vezes, era possessivo demais, protetor demais, sufocava demais, mas doce demais, impossível questionar um homem tão extraordinário como ele. Impossível! Porém, uma conversa no banheiro, uma ida a feira, uma visita inesperada, a verdade foi vindo a tona, as peças que não encaixavam agora tinham um motivo para não encaixar e a Sarah ia descobrir a verdade sobre tudo que estava acontecendo na sua vida.
O enredo constrói um leve terror psicológico, você sempre fica esperando alguém atrás da porta, ou observando pelo vidro, ou um rompante de raiva inesperado, ou uma vacilada nas palavras. A autora, Giovana Taveira, foi muito feliz na construção da história, primeiro o leitor fica apaixonado por Gabe, um homem doce demais que está ali para ajudar e fazer todas as vontades de sua amada. No segundo momento a verdade vai surgindo e o leitor vai ficando em dúvida sobre a real intensão do romance, até que chegamos ao terceiro momento e sim, fomos tapeados, Gabe ri da nossa cara.
A leitura é envolvente, o início é um pouco meloso demais, mas necessário para a construção dos personagens, a medida que a trama vai se desenrolando e o castelo vai ruindo o leitor é sugado pela expectativa das próximas descobertas e a vontade é de vasculhar todas as gavetas da casa, arrombar portas e pular muros. O final é simplesmente fantástico, Gabe parece que está na nossa frente relatando sua versão e rindo da nossa cara. Sarah tem reações reais de medos e incertezas, as vezes o que é obvio no campo racional, é um mar de escuridão no campo emocional.
Relacionamentos abusivos devem ser exaustivamente debatidos nos livros, nas séries, nas rodas de conversas, em todos os cantos possíveis, para que cada vez mais pessoas consigam identificar e se fortalecer diante dessas situações, pois, infelizmente, não estamos blindados a situações como essas. A Giovana foi muito feliz em sua abordagem mostrando toda a ilusão daquele amor doentio, o medo, a descoberta, o sentimento de culpa da vítima, as dúvidas, os receios, os traumas. Parabéns pelo belíssimo trabalho, que venha mais, que venha muito mais!
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